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UM VELHO NOVO CARTÃO POSTAL

  • Foto do escritor: Mirella Amorim
    Mirella Amorim
  • 28 de jun. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 30 de jun.

Mirella Amorim*


Juntando pontas aqui e ali, arriscaria dizer que o Largo do Estácio no Rio e o Largo da Banana, na Barra Funda em SP, são primos (mesmo que não conste nos autos que alguém tenha querido morrer de amor no Largo da Banana). Ambos igualmente classificados como berço do samba e destronados pelo progresso. Igualmente etéreos e fantasmagóricos. Igualmente vivos.
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Cada vez que fazíamos o caminho para o almoço dominical na casa da irmã mais velha do meu pai, ele dizia, ao cruzar a última fronteira da Tijuca em direção ao Centro: "Espia, isso aí que é o Largo do Estácio. Vê se pode alguém querer morrer de amor num lugar desse?". De fato, não era fácil entender que o triângulo de calçada mal ajambrada que se forma pelo encontro oblíquo das ruas Haddock Lobo e Joaquim Palhares seja (ou ou tenha sido) um largo, ainda por cima, um\ largo famoso.


Meu pai chegou no Rio a tempo de assistir a transformação do Estácio pelas obras do metrô, de ver nascer o "Piranhão" (sede da prefeitura construída sobre a antiga zona de prostituição da cidade, a Zona do Mangue, nos arredores do Estácio). Talvez ele tivesse condições de compreender a razão do poeta ao dizer que se alguém o quisesse matar de amor, que fosse no Estácio, bem no compasso, bem junto ao passo. Eu não, e por muito tempo reproduzi a piada do meu pai.


Foram muitos caminhos até criar uma cidade que pudesse chamar de minha; até aprender sobre madrugadas que dão em nada; até conhecer desejos que dão medo, entender mais sobre o sexo; até rasgar a camisa, enxugar o pranto e passear em praças e largos inexistentes quando o tempo está mais firme.


Juntando pontas aqui e ali, arriscaria dizer que o Largo do Estácio no Rio e o Largo da Banana, na Barra Funda em SP, são primos (mesmo que não conste nos autos que alguém tenha querido morrer de amor no Largo da Banana). Ambos igualmente classificados como berço do samba e destronados pelo progresso. Igualmente etéreos e fantasmagóricos. Igualmente vivos.


Quando Luiz Melodia lançou, em 1973, seu álbum de estreia, fazia tempo que o viaduto do Pacaembu tinha dado cabo do Largo da Banana e mais tempo ainda da fundação da "Deixa Falar", considerada a primeira escola de samba brasileira, pela "Turma do Estácio". Luiz Melodia era preto, do morro de São Carlos e não era sambista, mas conhecia uma combinação de temperos musicais capazes de fazer dele e do Estácio, eternos. O épico LP "Pérola Negra", com canções compostas pelo próprio Melodia, estourou quase todas as faixas, a começar pela canção título gravada e regravada por várias vozes da MPB.


Apegada às repetições, recentemente cismei com o disco e me vi espantada com o tanto que conhecia e desconhecia as músicas. Pensava no frescor dessas canções quando vi a notícia de que Adélia Prado havia vencido o prêmio Camões de 2024. Cheia de orgulho busquei na estante o tijolo com sua poesia reunida. Abri em uma das páginas dobradas e lá estava "O vestido", poema do seu livro de estreia, Bagagem (1976). Com licença poética, D. Adélia, reproduzo um fragmento:


Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.

É só tocá-lo, e volatiliza-se a memória guardada:

eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.

De tempo e traça meu vestido me guarda.


O que poderia haver de comum entre esses artistas além de terem estreado nos anos 1970 e estarem comigo nessa noite de inverno quente? Acho que nada ou quase nada. Só sei que ao ouvir "Pérola Negra" penso estar diante de um livro de páginas amareladas que cheira a novo. Um sustinho de beleza e, de pronto, volatiliza-se o guardado. Um velho e novo cartão postal no largo da memória de madrugadas que dão em Sol.



*Carioca da clara, vivendo em São Paulo. Pós-graduada em Produção de Textos Literários pelo Instituto Vera Cruz/SP, multiartista, graduada em Serviço Social e servidora pública. Escritora, poeta, autora de “Amorogâmica” (Editora Patuá, 2024). Autodidata em artes visuais, bordadeira digital e criadora da página “Álibis & Alfarrábios” (www.alibisealfarrabios.com.br), deve à música brasileira sua formação subjetiva e estética.



 
 
 

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