PARA QUE AMENDOEIRAS?
- Mirella Amorim

- 15 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 30 de jun.
Mirella Amorim*
Veio o verão (que no Rio de Janeiro chega junto com a primavera) e vimos que o pinheiro, mirrado, não ia servir nem para árvore de Natal. Os famosos 40º à sombra deixaram de ter... a sombra. Ao contrário do pobre pinheiro da vila, tão inadaptado ao clima tropical quanto eu, as amendoeiras vivem muitíssimo bem no Rio. Estão espalhadas por toda a cidade, dando sombras enormes e estourando calçadas com suas raízes.
Seu Moacir tinha tanta birra com a amendoeira da vila que um dia convenceu a todos de que ela deveria ser eliminada.
Amendoeira é bicho ruim. Em outra casa que Seu Moacir trabalhava, as raízes se emaranharam ao esgoto. Teve que quebrar o chão todo para arrancar a diaba. Foi Seu Moacir quem descobriu a causa do entupimento que há meses atormentava a família do Coronel. Não lembro o nome do Coronel, mas na Tijuca da minha infância, quando trocaram a amendoeira da vila por um pinheiro, havia coronéis.
Seu Moacir era jardineiro e cuidava de esgoto. Talvez Seu Moacir não gostasse de plantas, parecia mais realizado quando exterminava, com fogo e creolina, as baratas que ferviam ao destampar a caixa de gordura que só Seu Moacir limpava (nunca mais morei em uma casa e espero que tenha havido uma evolução nesses métodos).
A amendoeira quem plantou foi nosso senhorio que atendia pelo curioso nome de Seu Justo. O português era dono das seis casas da vila, quatro sobrados, dois a dois, geminados, que davam de frente para um pátio comum carinhosamente chamado de pracinha. No meio da pracinha a amendoeira que, de quando me lembro, quase ultrapassava a janela do segundo andar das casas. Depois, uma servidão levava a outra pracinha. Lá, Seu Justo construiu duas casas maiores e plantou uma goiabeira. Eu, criança esquisita, gostava de estudar no alto dela. Uma goiabeira tão grande que também alcançava o segundo andar, tão cheia de galhos que ninguém dava por mim horas a fio ali trepada. De goiabas, até hoje não gosto, mas como amava aquela árvore. Não ligava para a amendoeira. Achava estranho uma árvore que dava uma fruta que só morcegos comiam e onde não era possível subir. Detestava morcegos e, pensando bem, eles comiam muito mais as goiabas que as amêndoas (será que se chama amêndoa?), mas preferia pensar que a presença dos morcegos era culpa da amendoeira.
No dia do ocaso da amendoeira da vila não cheguei a comemorar, mas tive uma alegria. Os galhos antes inatingíveis, depois de derrubados no chão, se tornaram matéria prima para uma cabana tão perfeita quanto a do Crusoé (ou quase) que durou apenas dia. Seu Moacir talvez não gostasse de árvores e menos ainda de criança. A felicidade com que desfez minha obra pareceu até maior que seu triunfo com as baratas.

Veio o verão (que no Rio de Janeiro chega junto com a primavera) e vimos que o pinheiro, mirrado, não ia servir nem para árvore de Natal. Os famosos 40º à sombra deixaram de ter... a sombra. Ao contrário do pobre pinheiro da vila, tão inadaptado ao clima tropical quanto eu, as amendoeiras vivem muitíssimo bem no Rio. Estão espalhadas por toda a cidade, dando sombras enormes e estourando calçadas com suas raízes.
Por pura gentileza, abrem vaga para a luz quando o tempo esfria. Enquanto se preparam para ficar completamente nuas, cobrem o chão de um espesso tapete de folhas coloridas crocantes, para desespero dos que tem por função recolhê-las: garis, porteiros, donas de quintais suburbanos e o Seu Moacir.
Era agosto de 2021 e ela veio pela primeira vez me ver no Rio. Na véspera, peguei emprestado um carro com teto de vidro para impressionar e fiz um pacto com a amendoeira da porta do meu prédio. Se prepara, fica bem bonita, vou receber uma mulher quase do seu tamanho. Não sei como, mas tenho certeza de que ela se comunicou com as outras. Na manhã seguinte, um espetáculo síncrono de mil tons de vermelho, laranja e amarelo por toda a cidade. Fui buscá-la no Santos Dumont decidida a exibir orgulhosa minhas amigas amendoeiras.
Dei sorte e a ponte aérea descarregou seu celular. Uma janela de oportunidade em pleno dia útil. Abri o teto do carro e comecei pelas amendoeiras da Belle Époque, Glória, Praça Paris (em Paris tem amendoeira?), cruzei o Aterro do Flamengo, mostrei as da orla de Copacabana que dão sombras enormes, as do Leme quase tão altas quanto os prédios, terminei o périplo na mureta da Urca sob a sombra de uma delas, tomando cerveja com pastel de camarão. Tiro certo. Um ano depois me mudei para São Paulo para viver com ela. Ganhei a mulher, ipês amarelos e brancos (inexistentes na minha cidade) e perdi as amendoeiras.
Quem sabe não estão certos o Seu Moacir e a Adriana Calcanhotto: para que amendoeiras pelas ruas?
*Carioca da clara, vivendo em São Paulo. Pós-graduada em Produção de Textos Literários pelo Instituto Vera Cruz/SP, multiartista, graduada em Serviço Social e servidora pública. Escritora, poeta, autora de “Amorogâmica” (Editora Patuá, 2024). Autodidata em artes visuais, criadora da página “Álibis & Alfarrábios” (www.alibisealfarrabios.com.br), deve à música brasileira sua formação subjetiva e estética.








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