MARISA MONTE NASCEU DA BARRIGA DO JORGE BENJOR
- Mirella Amorim

- 20 de jul. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 30 de jun.
Mirella Amorim*
Já ouvi dizer que poesia é a captura do espanto, é a criança diante do novo. De alguma forma, é também o que fizemos e o que fizeram com a nossa criança. E por que não dizer que a poesia pode ser o encontro com a infância real, crianças em carne e osso?
O que tem do outro lado das antenas?, era o que queria saber a criança quando olhava para um lugar que lhe diziam chamar Sumaré. Não poderia imaginar que décadas depois saberia apontar em qualquer direção e dizer tudo que tem ali e acolá. Não poderia imaginar que iria morar em uma outra cidade que também tem antenas no alto de um morro chamado Sumaré, mas só se veem as antenas.
A criança pensava que o seu Sumaré era único e que as montanhas por onde corria os olhos até alcançar o Cristo de costas eram os limites do mundo. Quando subiu o Corcovado viu que havia mais montanhas além do Sumaré, uma lagoa enorme, uma pista que parecia o Autorama do vizinho, o mar, o Pão de Açúcar em tamanho pequeno e uma ponte com jeito de centopeia.
Pela primeira vez, a criança olhou para estátua de perto e, ao notar que era craquelada, entendeu as razões que o levavam a ter o estranho nome de Cristo Arrebentou. Concluiu que, na hora da Ave Maria, o Cristo implodia e, no dia seguinte, amanhecia regenerado. Fenômeno que parecia não ser visto por ninguém, mas um mistério que ela havia desvendado. Todos os dias, quando no rádio de casa tocava a oração às seis da tarde, a criança parava o que estivesse fazendo, abria os braços, fazia do corpo cruz e dizia: o Cristo Arrebentou vai cair, e se lançava ao chão. Ninguém nunca perguntou o que o porquê daquilo. Ela se levantava e seguia seus afazeres silenciosos de criança.
A criança tem três fofos aninhos, dança agachando, sacudindo a cabeça, o bumbum e canta: balança pema, balança sem paraááá. O pai gosta de ver a criança gostando e mostra a mesma música em versão diferente. A criança fala: de novo, agora aquela, de novo essa. Entre uma repetição e outra o pai explica quem está cantando, quem inventou a música. Uma canção mais velha que ele e mais velha até que esta cronista.
Debaixo de uma amendoeira, passando as férias de julho com a família no sul da Bahia, a criança sem preâmbulos fala ao pai: Marisa Monte nasceu da barriga do Jorge Benjor. Tratados e mais tratados sociológicos, teses, mitos de origem, hipóteses, histórias esquecidas e mal contadas em busca de uma explicação de Brasil e não é que a danada da menininha vai lá pá: faz a síntese.
Sempre procurei evitar coincidir minhas férias com o calendário escolar. Para que disputar espaço com hordas de pequenos demônios e suas filas de quereres? Insaciáveis. Mas como tudo sempre pode mudar há algumas semanas lá estava eu num voo para passar férias de julho no Rio, coalhada de criança.

Li em alguma postagem que viagens são as únicas coisas que fazem os adultos suspenderem a realidade, ou seja, concluía a matéria, voltam a experimentar a infância.
Tenho sérias desconfianças dessa afirmação. Embora o texto claramente se referisse à viagem como deslocamento com finalidade de turismo/lazer; eu poderia considerar em sentido amplo. Nem assim afirmaria que viagem é a única coisa capaz de nos suspender a realidade. Mas, deixando isso de lado, o que também me intriga neste tipo reflexão que envolve felicidade é que o desejo de experimentar a infância não é necessariamente acompanhado da vontade de estar com crianças.
Já ouvi dizer que poesia é a captura do espanto, é a criança diante do novo. De alguma forma, é também o que fizemos e o que fizeram com a nossa criança. E por que não dizer que a poesia pode ser o encontro com a infância real, crianças em carne e osso?
Depois de décadas, subi o trenzinho do Corcovado. Falei para a criança: vamos sentar do lado direito, sabia o o que estava por vir: a curva do óoohhhh. Eu vi quando ela viu. O grito. Susto de beleza. Por medo, creio, segurou forte minha mão e não tirou os olhos do abismo.
Não desejei ter filhos, nunquinha tive essa vontade e sigo achando uma lou-cu-ra. Ainda bem que há quem se encoraje de fazê-lo, pois me dão a sorte ser testemunha de um olhar estreante. Poesia em ato. Obrigada.
Agora, com toda sinceridade, devo-lhes agradecer também por mero cálculo utilitarista: as crianças de hoje serão os enfermeiros de amanhã.
Evoé, jovens à vista!
*Carioca da clara, vivendo em São Paulo. Pós-graduada em Produção de Textos Literários pelo Instituto Vera Cruz/SP, multiartista, graduada em Serviço Social e servidora pública. Escritora, poeta, autora de “Amorogâmica” (Editora Patuá, 2024). Autodidata em artes visuais, bordadeira digital e criadora da página “Álibis & Alfarrábios” (www.alibisealfarrabios.com.br), deve à música brasileira sua formação subjetiva e estética.








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