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E NÃO É QUE ALGUMA COISA ACONTECE NO MEU CORAÇÃO?

  • Foto do escritor: Mirella Amorim
    Mirella Amorim
  • 20 de dez. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: há 4 dias

Mirella Amorim*

Mais de dois anos vivendo nessas terras e, no fim das contas, não é mesmo que alguma coisa, pujante como São Paulo, acontece no meu coração. Tenho um propósito, um copo Stanley legítimo e estudo literatura. Além disso, lancei meu primeiro livro. São poemas escritos nesse intermédio de cidades. Oficialmente, uma escritora – oxalá, cheguem os leitores. Obrigada, essepê! Com sua licença, e mesmo sem ela, estou entrando.

 

Eis um tema batido: as idiossincrasias paulistanas sob o olhar de uma carioca. Bom, para começar, não sou exatamente uma carioca. “Natural de Vitória-ES” é o que consta no erregê (no errejota, não se fala erregê, peguei essa mania em essepê). Foi por pouco que vinguei. Alguma coisa entre os brônquios e os alvéolos antecipou os planos familiares e, antes de qualquer gugu-dadá, fui para o Rio de Janeiro. Com isso, tive a sorte de escapar do único assunto que afirma a identidade capixaba: a defesa da moqueca sem dendê. Uma rixa inútil com os baianos que sequer se lembram de que o Espírito Santo existe, que dirá de sua moqueca.


Malograda sina. Rejeitei o monotema da “verdadeira moqueca” e acabei refém do único assunto que afirma a identidade de uma carioca (ainda que troncha) em São Paulo: os contrastes entre a nossa gente bronzeada que mostra seu valor e essa gente valorosa que disfarça a palidez.


Cheguei pelo encontro das águas do Tietê com o Pinheiros, cruzei os charcos da Ceagesp, aportei na ilha Vera Cruz. Fiz morada nas colinas das Perdizes e de tantas outras aves que gorjeiam algures. Sabe-se lá como, tive a fortuna de vir parar na Zona Oeste. É daqui que olho São Paulo. Um tanto patética e inútil a tentativa lírica dessas frases. A poética por aqui tem outras notas e tons.


Só quatrocentos e cinquenta quilômetros nos separam e não me cansa o espanto. As ilhas de prosperidade são tão maiores em escala e pujança que quase dá para, num átimo de distração, pensar que aqui o luxo é para todos. Distante da cínica convivência democrática praiana e batuqueira, ficam bem mais nítidos o bom e velho conceito de classe social e, por conseguinte, meu lugar ao sol. Fora que me entendi, em alguma medida, negra, coisa que jamais soube ser. Isso é bom!


Tem coisas que só São Paulo faz com você, e tem muitas coisas cuja melhor versão só tem em São Paulo. Pão, café, livraria, monumento, ponte, oportunidade. Uma gente proba, culta, e os mais bem acabados exemplares de um tipo que ultrapassa fronteiras: o tal homem-branco-hétero. Por essas bandas, ele é letrado-ilustrado-analisado-culpado-desconstruído. Às vezes nem tão hétero, nem tão culpado, menos ainda desconstruído. No entanto, invariavelmente disposto a explicar tudo aquilo que (acha que) não foi entendido. Na ausência de repertório para classificar o que não é espelho, está sempre apto a te chamar de figura na certeza de estar fazendo um elogio. Possui uma comovente satisfação em ensinar, elucidar, aclarar. Não sem razão, é em São Paulo que se encontram os centros de excelência de todas (ou quase todas) as áreas.



Quando vão para a natureza, dão às gentes do lugar bons exemplos de preservação ambiental, de como se pode viver com menos e, de quebra, compartilham receitas de um bom pesto e massa caseira. Do caderninho da nonna. Uma beleza! Há quem diga (acredite, há!) que se ainda existe natureza (“natureza” é uma forma genérica de se referir a alguma porção de Mata Atlântica intocada e entocada onde, literalmente, vão respirar), é graças à inequívoca, admirável e ressignificada vocação desbravadora do paulistano. Uma espécie de nouveau pionnier.


Uma variante da natureza é a – também genérica – “praia”.  O maior grau de distinção para praia é se ela pertence ao Litoral Norte ou Sul. O pessoal aqui da Zona Oeste, pelo que sei, frequenta exclusivamente o norte. Não importa se são enseadas, praias com ondas, de mar aberto, com acesso fácil ou difícil. Um paulista, quando desce a serra, não qualifica seu destino, diz apenas e tão somente: vou para a praia.


E assim, com eficiente dissociação dos conceitos “cidade” e “natureza”, acham esquisitíssimo, sem qualquer sentido prático, observar fenômenos DA natureza NA cidade e, pior, em um dia (como o próprio nome diz) útil.


Depois de meses perdida no calendário lunar, li em algum lugar que teríamos uma lua cheia especial. Não lembro se era alguma coisa astrológica ou astronômica, mas era da maior importância. Procurei por um ponto de observação, consultei o azimute, baixei um aplicativo de bússola, convidei pessoas. Que figura, disseram. Fomos eu, um amigo igualmente figura e uma garrafa de vinho para o Mirante da Lapa. Pimba! Ela veio gigante. Noite clara, fria, céu de Gotham City. Românticos que somos, por pouco, não uivamos.


Mães empurrando carrinhos e bebês, gente correndo, passeando com cães, todos que, com o subir da lua, foram se recolhendo. Silêncios e outros frequentadores vieram e, aos poucos, passamos a ser observados a curta distância por homens. Deixamos a lua para eles. Semanas depois, descobri que aquele era um lugar de dogging. Nunca tinha ouvido falar, mas ao que parece é a prática de fazer sexo em público. Acho até que isso é antigo, mas em essepê tem esse nome. Que figuras!


É compreensível a admiração que têm pelas praias. Eu mesma só passei a dar valor quando as perdi. Às vezes sinto mais falta das fragatas e das amendoeiras que da praia, mas viver sem mar é osso. Por isso, me dá um certo dó quando os vejo chafurdando naquilo que as praias podem ter de pior: a areia. Aos magotes, jogam tênis de beach cercados por telas, feito ratinhos.


Juro. O que direi a seguir não é deboche. Acho surpreendente que haja paulistano que não se constranja ao chamar de parque um viaduto pendurado nas janelas das casas das pessoas. Vejam, adoro pedalar no Minhocão por inúmeros motivos; agora, parque? Certeza, mano? Mas o que me choca mesmo é a pachorra de chamar de prainha lugares que, de semelhança com praia, têm somente o colorido e o desconforto das cadeiras de náilon. Os mais ousados ainda têm a manha de oferecer piso coberto pela malfadada – adivinha? – areia. É tão estranho usar cadeira de praia no asfalto quanto os casacos de neve que cariocas vestem ao menor sinal de dia nublado.


É intrigante, também, a forma como dão títulos às vias. Na Lapa, as ruas devem ter sido nomeadas por um minimalista, com nomes comuns, que tanto podem ser de gente como de cachorro: Fábia, Tito, Clélia.


Em Perdizes e adjacências, os logradouros homenageiam um sem-fim de tribos indígenas. Algum tipo de reparação histórica ou placas como pequenos troféus de serial killers? Não têm um quê de sadismo? Vai ver não é nada disso. Nenhum urbanista soube me explicar e não encontrei nas vagas da internet uma informação convincente. Talvez seja ressentimento pensar assim, mas Higienópolis ter as ruas batizadas com nomes de estados do Nordeste só pode ser sarcasmo.


São bonitas as alamedas do Jardim Paulista que, mesmo sem álamos, laureiam as irmãs do interior: Campinas, Santos, Jaú, Itu, Franca, Tietê, cidades que ajudam a fazer desse Estado uma máquina!


E a Simpatia das ruas da Vila Madalena? Já pensou que agradável deve ser ter como endereço rua Girassol; que pinta morar na Purpurina; e que graça carregar um bebê no sling da Harmonia? 


Tenho dúvidas se os botecos-monumento são sinceros, mas sei que são esforçados. Bares que se apresentam por terem, como diferencial, jeito carioca, alma carioca, nome de praias e bairros cariocas. Tem uns (dizem) que têm até samba carioca. Só é bom ficar ligada, dependendo do grau da animação, pois algum tonto pode bater palminha para você feito o Príncipe Charles para Pinah. Por falar em “tonto”, essa é uma expressão que aprendi aqui. Adoro. Parece ingênua, mas é muito precisa.


Voltando. Sendo honesta, há verdadeiros botecos cariocas em São Paulo. O Pirajá, por exemplo, tem a atmosfera da Ipanema dos anos 1960, chope cremoso tirado na régua, caipirinhas excepcionais, Oswaldo Aranha, e um serviço da melhor qualidade. Tem até samba com Moacyr Luz (procure saber!). Merecemos as honras. O Rio é uma vigorosa esculhambação e é natural que boteco carioca tão bom quanto os daqui nem exista no Rio de Janeiro.


Uma ressalva: a guarnição à francesa é coisa nossa, rainha dos galetos-bunda-de-fora, e não tem eficiência paulista que seja capaz de reproduzir. Batata finamente cortada, frita (não é batata palha!), coberta por um farto refogado de cebolas, petits pois e cubos de presunto. Uma iguaria.


Paulista ama o Rio (e cariocas!) como se amam as amantes! Sabem que não é para casar, nem para levar muito a sério, mas dá um tesão danado. Cariocas amam São Paulo (não os paulistas) como se amam os maridos. É uma analogia antiquada, reconheço.

Ocorre que sou do século passado – comemoro neste dezembro meu jubileu de ouro – talvez por isso, a síntese esteja presa em meu tempo e, portanto, incapaz de captar as formas modernas de relacionamentos livres, abertos, ao que parece, mais saudáveis.


Segundo minha mais paulistana amiga, precisei vir morar aqui para me tornar escritora. Minha cidade me dispersava demais. Essa mesma amiga, cheia de sínteses perfeitas, me lançou mais uma: quem gosta de escrever faz diários. O que a gente quer é ser lida. Errada ela não está.


Nesses dias coloquei um ponto final no romance que escrevo. Taí uma coisa elevada. Mas fico aqui pensando se, na realidade, a vocação de uma escritora carioca não seja escrever narrativas breves, pedestres, forjadas no mais perfeito desalinho urbano. Mas quem lê esse tipo de coisa? No caso dos romances, pode-se admitir que não seja lido por quase ninguém, já que escrevê-lo e publicá-lo seja, em si, tão edificante quanto estas ênclises. Vai saber. Na dúvida, sigo firme, me levando mais a sério do que jamais havia sido capaz. Tem coisas que só São Paulo faz por você, e aqui me vejo diante da minha melhor versão. Isso é bom!


Mais de dois anos vivendo nessas terras e, no fim das contas, não é mesmo que alguma coisa, pujante como São Paulo, acontece no meu coração. Tenho um propósito, um copo Stanley legítimo e estudo literatura. Além disso, lancei meu primeiro livro. São poemas escritos nesse intermédio de cidades. Oficialmente, uma escritora – oxalá, cheguem os leitores. Obrigada, essepê! Com sua licença, e mesmo sem ela, estou entrando.


Preciso terminar, mas, por último, já que falei no Moacyr Luz e caso não saiba do que se trata, sugiro: se um dia sua agenda permitir, procure o Clube Renascença, que fica na tríplice fronteira entre Vila Isabel, Andaraí e Tijuca. Passe uma tarde de segunda-feira, inutilmente, no Samba do Trabalhador. Muita coisa há de lhe acontecer no coração, do cóccix ao pescoço e, com sorte, da cabeça aos pés.



*Carioca da clara, vivendo em São Paulo. Pós-graduada em Produção de Textos Literários pelo Instituto Vera Cruz/SP, multiartista, graduada em Serviço Social e servidora pública. Escritora, poeta, autora de “Amorogâmica” (Editora Patuá, 2024). Autodidata em artes visuais, bordadeira digital e criadora da página “Álibis & Alfarrábios” (www.alibisealfarrabios.com.br), deve à música brasileira sua formação subjetiva e estética.


 
 
 

1 Comment


Hilda Lucas
Dec 21, 2024

Dizer que você é uma figura, é redundância óbvia e explícita.

É preciso uma carioca, estrangeira do Espírito Santo, para declarar : “Tem coisa que só São Paulo faz por você “.

Eu sei disso. Eu também sou resultado das coisas que SP me deu e fez. Se a Bahia me trouxe epifanias de anjo, o Rio a alegria das cigarras, SP me deu a lucidez das abelhas. Uma disciplina amorosa e dedicada para viver uma cidade que se expõe como ferida mas entrega em excesso, pro bem e pro mal.

SP é como a FÉ: há que ser forte, porque SP é foda 🎶.

Virar escritora em SP, é uma forma linda de nascer aqui, minha querida. Nisso também…

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